segunda-feira, 8 de setembro de 2008

AS SAPATILHAS DA JUNTA

Poderia começar pela parte mais fácil da questão. Bastaria ir até às declarações do atleta Marco Fortes, com a já celebérrima expressão, “de manhã, só estou bem é na caminha” e generalizar esta frase infeliz para o comportamento dos nossos atletas nas recentes olimpíadas que tiveram lugar na China. Todavia, se o fizesse, estaria a ser frontal com alguns que manifestamente ainda não têm arcaboiço para aguentar esta mediatização, mas estaria a ser profundamente injusto com outros tantos atletas sobre os quais tenho o maior respeito.
Embora não os conheça pessoalmente, quero escrever aqui, de uma forma livre mas apaixonada, sobre alguns deles, fazendo fé que estes são o topo da pirâmide de outros tantos que já competem ao mais alto nível ou se preparam para o fazer.
Ainda tenho uma bitola muito naïf quando se trata de avaliar as pessoas que são boas naquilo que fazem. Sempre detestei as vedetas pobres de espírito. Embora o que conte é que os profissionais, independentemente da sua arte, sejam bons naquilo que fazem, a parte pessoal deve acompanhar sempre a excelência dos seus feitos.
Por uma questão de escolha, e essa hierarquização tem como base natural a conquista da medalha de ouro, começo pelo atleta Nelson Évora. Por estes dias, é fácil louvá-lo. O país inteiro, e de uma forma justa, acrescente-se, elogia a sua conquista.
O que as pessoas não sabem, embora essas histórias comecem agora a serem tornadas públicas, é o esforço pessoal deste atleta e o seu percurso para atingir o sucesso. Ao subir a pulso na sua carreira, Nelson tornou-se num exemplo de alguém que consegue entrar no quadro restrito dos vencedores de uma medalha de ouro, que o consagra pessoalmente e que torna visível muitas horas de incerteza e de indefinição.
Uma palavra também para Francis Obikwelu, talvez extemporâneo na forma como abandonou os Jogos Olímpicos, atitude com a qual estou em completo desacordo, mas que não é suficiente para apagar as suas conquistas, as dificuldades pessoais que sentiu para as atingir, e, acima de tudo, a humildade com que nos pediu desculpa pelo seu último insucesso.
Finalmente, um dos casos que tive conhecimento devido a uma reportagem televisiva, mas que de uma forma cabal representa muitos dos problemas que assolam os nossos atletas, e que justificam muitas vezes que pessoas bem formadas e capazes não consigam competir nas mesmas circunstâncias do que os outros concorrentes.
António Pereira, atleta que entrou na modalidade da marcha de 50 quilómetros, é um atleta em part-time porque treina após as suas nove horas diárias de trabalho como electricista numa empresa de Nogueira da Maia. É grande o seu sacrifício.
Mesmo assim quando lhe perguntam porque é que anda nisto, responde: “ando porque gosto. Pelo dinheiro não é de certeza. Se trabalhar dois sábados na empresa, ganho o que recebo no clube por mês. É a paixão pela marcha que me move.”
António Pereira, marchador do JOMA, de 33 anos, conseguiu a sua melhor classificação de sempre em grandes competições, batendo a melhor marca nacional que perdurava desde 2004.
Em diferentes níveis tentei escolher atletas que são referências no desporto e fora dele. Não minimizando as conquistas do Nelson nem as outras recentes do Francis, certamente não me levarão a mal se enveredar pelo exemplo do António transportando-o para uma reflexão que creio ser necessária.
Há por aí muitos atletas que merecem o nosso apoio e compreensão. E se pensarmos que o marchador teve de recorrer a umas sapatilhas compradas pela junta de freguesia onde reside, compreenderemos que todos e quaisquer feitos que estes atletas consigam não só são vitórias pessoais, como serão exemplos que vale a pena difundir.

Publicada no Jornal Região Sul, edição de 3 de Setembro de 2008
link http://www.regiao-sul.pt/noticia.php?refnoticia=87553

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